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Um quadro do Fantástico no qual um ator mirim interpretou um menino de rua pedindo um livro para as pessoas que passam reviveu uma história real que virou livro. A "pegadinha" foi baseada no livro Fábula Urbana, do escritor José Rezende Jr, inspirado em um fato real que aconteceu com o próprio autor, quando ele estava em um shopping em Brasília e uma criança pediu que ele lhe comprasse um livro.
O que passaria na sua cabeça se uma criança de rua te pedisse um livro?
Eu, sinceramente, fiquei sem resposta. Mas estou aqui com muitas caraminholas na cabeça!
E enquanto não decido o que faria ou como me sentiria, fui pesquisar o livro, claro!
A sinopse é instigante:
"Fábula urbana"é um álbum ilustrado que apresenta a releitura de uma cena bastante comum nos centros urbanos: a de crianças e jovens pedintes. O preconceito de um “homem de terno” torna-se conflituoso quando o pedido feito pelo menino, em vez de dinheiro, é de um bem cultural inquestionável: “Moço, me paga um livro?” A obra, bastante densa, passa a questionar nossos valores e certezas e os preconceitos da classe média, instigando grande reflexão social, para crianças e jovens de todas as idades.
Gostei porque, vejam que democrático, no site do autoré possível ler (e salvar para seu dispositivo) a crônica:
Fábula Urbana:
- Moço, me dá um livro?
- Não tenho trocado.
A resposta escapuliu assim, num refluxo, como se aquele fosse o pedido mais natural do mundo. "Livro?!", refletiu, um segundo depois, o homem de terno. Teria o menino pedido "livro", em vez de "dinheiro", "trocado", "um real"? Ainda que houvesse o menino pronunciado frase mais coerente - "Moço, me dá um de-comer que eu tô com fome?"- alguma coisa estava fora de ordem. A começar pelo diálogo em si: como haveriam de contracenar neste mesmo shopping personagens tão opostos quanto este, o homem de terno, e aquele outro, o menino pobre que pedia livro, dinheiro, comida ou o quer que fosse? Era, pois, um diálogo inexistente, concluiu o homem de terno.
- Pode ser qualquer livro, moço.
A insistência do menino trouxe o homem de terno de volta à realidade absurda. O homem olhou em volta: nenhum segurança de paletó e gravata à vista; sequer o mais remoto zumbido de um walt-talk. Não que o homem de terno temesse alguma violência por parte daquela triste figura em miniatura. Talvez até temesse, mas em outra situação: estivesse ele parado no sinal vermelho,vidro do carro estupidamente aberto, e o menino, caco de vidro em punho magro, grunhindo com a voz gosmenta de cola de sapateiro, "Aí, tio, me dá um livro aê, tá ligado?" Talvez até temesse, fosse o menino menos menino, não mais o embrião de um perigo futuro, mas o perigo em si, já maduro, aqui e agora. "Não, ainda é cedo para ter medo, pelo menos deste aí... talvez daqui a dois ou três anos", calculou, por alto, o homem de terno, avaliando, com alívio, a altura e o peso do menino.
Na seqüência, o alívio deu lugar à indignação. Era uma questão de cidadania: o homem de terno pagava impostos e dízimos; estacionara o carro na garagem automatizada, guardara o ticket no bolso do paletó azul-marinho, tomara o elevador panorâmico; fizera tudo certo. Tinha, pois, o direito constitucional de não ser, assim, afrontado pela realidade, ainda mais num shopping, fortaleza arquitetada para resistir a qualquer ofensiva da vida real. Realidade, ali, só mesmo a dos reality shows exibidos nas tevês de 29 polegadas das lojas de eletrodomésticos.
- Moço, o livro não precisa nem ter figura. Pode ser do mais baratinho.
De tão pequeno, o menino coube, da cabeça aos pés, num único olhar do homem de terno.O figurino, é certo, não parecia adequado ao personagem "menino pobre clássico", que exigiria: calção surrado, pés descalços, cobertor fedorento jogado nas costas nuas, lata de cola nas mãos. Não. Talvez graças a esse artifício, o de fugir ao figurino-padrão, conseguira o menino pobre burlar a segurança do shopping.
"Negligente segurança", rosnou em pensamento o homem de terno, pois a pobreza do menino, ainda que camuflada sob certo grau de dignidade (era possível que tivesse mãe, o menino, "mas pai ausente ou alcoólatra, na certa"), não resistiria a um olhar mais atento: calça remendada, com a barra desfeita, camiseta de malha puída, enorme, decerto herdada do irmão já morto pela polícia ou pela gangue rival ("Deus, como essa gente tem filhos!"), e o tênis - sim, o tênis, que até parecia de marca ("imitação ou roubado, com toda certeza"), mas imundo e com barbante encardido fazendo o papel de cadarço.
Caso persistisse alguma dúvida quanto ao lugar na pirâmide social ocupado pelo menino, bastaria ao homem de terno conferir a indelével marca registrada de toda e qualquer pobreza infantil: o nariz a escorrer num resfriado eterno e sem remédio.
O menino secou provisoriamente o nariz com o dorso da mão e voltou à ofensiva, desta vez com o olhar silencioso que implorava, reivindicava, cobrava, acompanhado da interjeição incisiva e curta, que ao homem de terno soou quase agressiva.
- Ã?
O homem de terno olhou em volta, em busca do deserto vazio e seguro de todos os shoppings do mundo, que é sempre feito de multidão e sacolas, mas agora, ali, não havia ninguém, nem nada. "Está ficando tarde", pensou o homem, tenso. Os únicos vestígios de presença humana vazavam exatamente da livraria envidraçada, cuja fachada refletia dois seres de dimensões tão diferentes, frente a frente num encontro improvável. O homem entrou, seguido pelo menino. Caminharam quase juntos, mas distantes, até o fundo da livraria.
- Escolhe.
Mal pronunciou, o homem de terno, a palavra desconhecida - "escolhe" - cujo significado o pequeno interlocutor apenas intuía, pôs-se o menino a percorrer as prateleiras entulhadas de livros de todas as cores e tamanhos. O homem observou, divertido, o olhar de assombro do menino, o queixo apontado para o topo da prateleira, a respiração suspensa, a indecisão em cada músculo do corpo
- Moço, como é que escolhe?
O homem de terno olhou o menino, e o viu pela primeira vez em sua sólida fragilidade. Não havia por que temê-lo, não ainda, não esta noite, não aqui. O homem percorreu, então, com olhos e dedos experientes as lombadas dos volumes expostos na prateleira. Puxou um, mais ou menos ao acaso, e estendeu ao menino. Virou as costas e deu alguns passos em direção ao caixa, à espera do agradecimento comovido. Que não veio.
- Moço, lê pra mim?
Sem saber a razão, sem ao menos perguntar a razão, o homem leu. Ou melhor, esquivando-se do trabalho de apanhar os óculos no bolso interno do paletó, folheou meio cego o livro em ordem errática, e valeu-se apenas da memória esquecida, de quando era pequeno, emendando uma história na outra, embaralhando enredos e personagens da infância remota, que, só agora se dava conta, jamais compartilhara com os filhos. Era uma vez um gato de botas perdido na floresta com sua irmã Maria que era bruxa e usava um chapeuzinho vermelho aí chegou o lobo mau perseguindo os três porquinhos montado no tapete mágico quando encontrou a bela adormecida cercada pelos sete anões.
E lia o homem de um fôlego só, entonação a princípio displicente, incapaz de refletir a tensão de personagens engolfados por destinos tão trágicos e fabulosos. Mas tanta atenção prestava o menino, os olhos brilhando, a véspera do sorriso emoldurado pela secreção eterna a escorrer do nariz, que se viu o homem obrigado a administrar exageros, costurar com alguma coerência diálogos mal-ajambrados, e emprestar ao caos que ele próprio criara um arremedo improvisado de ordem, e modular a voz ao sabor de aventuras e desventuras, e conjurar sortilégios, e reconciliar amores impossíveis, e, no fim, já quase sem fôlego, punir os maus e recompensar os bons.
E melhor só não fez, o homem de terno que nunca havia contado história, porque era tarde demais, ou por não suportar o assombro familiar e o sorriso antigo que um dia fôra dele e agora pertencia ao menino. E foi-se o homem até o caixa da livraria, da livraria ao elevador panorâmico, do elevador à garagem automatizada, da garagem à rua, tudo num único movimento, sem olhar para trás. E já guiava o homem o automóvel veloz pelo trânsito lento, a boa ação aos poucos embotada pela culpa, a culpa que num instante era semente e no outro floresta centenária, não a culpa pela posse de tantos livros, ternos e automóveis, não a culpa pelo medo inicial e a intolerância de sempre, mas a culpa por ter esquecido de dizer ao menino, ainda que ele próprio não acreditasse, dizer ao menino no final "...e foram todos felizes para sempre", porque é assim que terminam todas as histórias, ou era assim que deveriam terminar todas as histórias.
E foi ruminando o amargor da culpa que o homem de terno parou no sinal vermelho, e foi ruminando o amargor da culpa que percebeu tarde demais o vidro do carro estupidamente aberto, no sinal fechado, àquela hora da noite vazia. E foi então que o homem de terno, grudado ao volante, avistou o vulto saindo dalgum beco escuro, o vulto que parecia o mesmo menino, mas de alguma forma outro, menos menino, mais forte e ameaçador, o tórax exageradamente inflado sob a camiseta puída ou antes era a arma oculta sob a camiseta puída, era o menino, e o homem vomitou a culpa e engoliu o medo, e trêmulo, incapaz do gesto salvador de fechar o vidro elétrico, entregou-se o homem de terno ao abandono, e viu o menino encher toda a janela do carro, e de sob a camiseta puída sacar o livro, e disparar à queima-roupa:
- Moço, me ensina a ler?
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